quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Viagem ao Topo do Topo

Os humanos são seres peculiares. Perante as adversidades da vida desesperam, sentem-se sem energia, sem força, chegam a pensar desistir de tudo. Mas quando as exigências roçam o sobre humano, quando as adversidades são gigantescas conseguem procurar bem lá no fundo e descobrir um outro ser dentro de nós, um titã, um Hércules que desconhecíamos.

Ponham-se à prova, atrevam-se a despertar o vosso lado sobrehumano.


23 Agosto 2008 – sábado
21h40m

Daqui a uma hora saio de casa.
Nesta altura excitação e algum receio já me circulam nas veias. Foram muitos Verões que vi terminar com a tristeza de não ter subido Sua Majestade. Agora, de repente, surge a oportunidade e estou preocupada, com receio de não chegar lá cima. E depois… vou ter muita sede durante o percurso = vou mijar muito. A viagem é de madrugada. Onde vou eu andar com o rabo ao léu, a deixar sair os líquidos? Ah ah ah.
Ouço Djavan para acalmar.

Fui à janela. A esta hora do dia já não consigo vê-la, a Montanha. No saco levo o “Fernando” (Nininho), pensos rápidos, lenços, toalhitas húmidas, 1 rôlo de papel higiénico, food and drinks, um casaco de Inverno, 1 extra pair of jeans, folhas de papel, caneta e mais algumas miudezas (coisas que “arrasto” comigo para todo o lado).
Aguenta aí Djavan…

22h40m
“Mr. Daddy” um pouco atrasado. Às 23h30 encontramo-nos todos na “futura cidade”.

23h30m
Chegámos. Daqui a pouco seguimos até ao sopé da Montanha. Pelo caminho mando umas mensagens de telemóvel (uma de parabéns à “Cruz”, outras a outras pessoas a dizer o k pretendo fazer).
Na Casa de Apoio às subidas última mija e trato de vestir as calças de ganga por fora dos leggins - já sinto frio – e enrolo a echarpe ao pescoço.
No carro aliviei o peso da mochila. Deixei os óculos de sol, protector solar, 1 Fanta, 1 Sprite, 1 maçã, 1 iogurte e um pacotinho de leite com chocolate.
Deixamos os nossos dados numa folha de registo dos Bombeiros e lá fomos rumo ao cume (00h30m).
Passados 2 minutos verificamos que já nos enganámos no trilho. Hi hi hi. Recuamos e encontramos o trilho certo. Somos 16, alguns como eu caloiros.

1ºs minutos são terríveis para mim. O ritmo é bem apressado. Estou no meio da fila. Concentro-me na luz do foco sobre os meus pés e pouco mais.
(Desenho Céu*)
Começo a ficar aflita mas não falo. Subitamente uma fraqueza apodera-se das minhas pernas como se os meus membros se tivessem transformado em penas. Acho que vou desmaiar. Tento arregalar os olhos mas continuo a sentir que o meu corpo vai desistir.
Como é possível? Tanto tempo a desejar esta “viagem”, tantas pessoas já a fizeram e eu vou falhar? Que desilusão!
No fim da fila mais alguém dá sinais de fraqueza e diz que quer desistir. Já estamos a andar há mais de 20 minutos. Será um “sinal” para eu aproveitar e desistir também? Lembro-me, então, do restaurante do Lourenzo, da comida, do ambiente. Vá lá “Céu”, tu consegues! Esta será mais uma viagem para relatar no blog.
2 elementos vão mesmo desistir. Os outros seguem até à Furna e esperam lá pelos outros que acompanham as “desistentes” até mais perto do início do trilho.

1h00m – Furna
Sento-me no chão, tiro as folhas de papel, a caneta, vejo as horas no telemóvel e escrevo “Estou com a língua pela boca fora. Agosto, noite estrelada. Perfeita para estrelas cadentes. Ainda não vi nenhuma. Olho só para os pés”.
Lá está a Ursa Maior.
Aguardamos mais uns minutinhos. Não bebo nem como. Parece que estou anestesiada. A tal sensação de não estar bem em mim, de não me aperceber bem se as coisas são reais. Alguém diz “Ela até escreve às escuras”.
Uns flashes quebram-me o raciocínio. Tiram-se fotografias.
Fazemo-nos de novo à “estrada”. O mal-estar, a fraqueza, tudo passou. Entretanto alguém pergunta se a Furna significa um quarto do percurso. “É um quarto sim, mas pequeno” respondem a rir.Continuamos… prefiro não olhar para trás porque parece que a Casa de Apoio está sempre próxima.

1h19m – 2ª paragem
Sento-me, tiro os papéis, a caneta e o telemóvel. Vejo as horas e escrevo “Vista lindíssima. Ursa Maior acompanha. Estou tão cansada. Ouvidos estão a doer”.

1h31m – 3ª paragem
O ritual é o mesmo. Sento-me, tiro os papéis, a caneta e o telemóvel. Vejo as horas e escrevo “Water” (cedi e resolvi beber água desta vez). “Estamos já do lado de São Mateus”. Entre a 2ª e a 3ª paragens na minha mente ia “rodando” a música Everybreath You Take, dos Police.
Houve alguém que se esforçou demasiado e poluiu o ambiente (arghhh).
“Mr. Daddy” decide daí para a frente guardar a caneta e dar-ma quando eu precisar. É também ele que me dá luz para eu escrever em cada “estação” para não gastar as minhas pilhas.


1h43m – 4ª paragem
Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita.
Vejo as horas e escrevo “Chocolate e água [não aguentei mais saber que tinha uma tablete de chocolate de culinária na “bagageira”]. Ainda o Everybreath You Take [entre a 3ª e a 4ª paragens]”.

2h00m – 5ª paragem
Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto apenas as horas. Depois como chocolate e bebo água.

Até à paragem seguinte, continuo com a minha técnica de passos curtos mas permito-me conversar. Não o tinha feito ainda enquanto andava para não ficar ainda mais cansada. O pessoal está animado e farta-se de rir.

2h09m – 6ª paragem
Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto apenas as horas. Depois como chocolate e bebo água.


2h18m – 7ª paragem
Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto as horas e escrevo que da 6ª para a 7ª estação fui ouvindo mentalmente a música do pe. B. Põe a Mão na Mão do Teu Senhor da Galileia. Depois como chocolate e bebo água.

Subida difícil. Vou levando com alguns mosquitos e borboletas na testa. Mãe telefona mas não posso atender.

2h35m – 8ª paragem
Telefono à mãe. A esta hora já vamos a mais de metade. Passámos já por um sítio onde se sente uma brisa mais fresca. “Aqui chegamos a metade”, dizem-me
.

2h48 – 9ª paragem
Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto as horas e “Cheira a Caeiro [planta que encontramos ao longo do percurso]. Depois como chocolate e bebo água.

3h04m – 10ª paragem
Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto as horas e “Lua [finalmente conseguimos vê-la]. Depois como chocolate e bebo água.

3h18m – 11ª paragem

Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto as horas e que entre a 10 e a 11ª paragens fui musicando “Merry Christmas [tema soft] e Are You Lonesome Tonight de Elvis Presley”. Depois como chocolate e bebo água.

Até à “estação de serviço” mais próxima deixo soltar umas melodias que merecem o reparo de alguém. “Oh, ela já canta”.

A paisagem é mesmo linda. Nunca pensei gostar tanto de ver a “VILHA”.

3h33m – 12ª paragem
Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto as horas e “2ª foto com Mr. Daddy”. Depois como chocolate e bebo água.

Mais à frente guiamo-nos por um marco pouco recomendável.

3h55m – 13ª paragem
Da anterior paragem até esta foi a que estivemos mais tempo em andamento porque o caminho foi tortuoso.

Sento-me, tiro os papéis e o telemóvel. “Mr. Daddy” tira a caneta e aponta o foco ilumina-me a escrita. Anoto as horas e “enganamo-nos no trilho. Andámos de pés e mãos em bagacina. Estamos quase lá”. Depois bebo água. Nas mãos algumas marcas desta etapa.

Andamos há largos minutos, à umas duas etapas, a dizer que estamos quase na cratera e nada.
Pelas 4h00m escrevo apressada no telemóvel que vi a primeira estrela cadente. “Mr. Daddy” já tinha visto. (Desenho Céu*)
Mais uns passos e chegamos ao rebordo da cratera. Ainda temos de andar mais um pouco até entrar. No cimo do piquinho uma luz forte. Alguém já lá está. Faz-nos sinal de luzes. Nós também (descobrimos mais tarde que se tratavam de dois brasileiros). Em baixo várias tendas de campismo enfeitam a paisagem. Já sabíamos que um grupo de mais de 40 pessoas estava lá a passar a noite.


4h15m – Finalmente. Entramos na cratera.
Cansados e contentes. Eu cheia de fome.
Procuramos um sítio para nos sentar-mos todos juntos. Abrimos sacos cama e estendemos cobertores. Tiramos fotos e começamos a comer.
Tirei então da mochila o líquido preparado antecipadamente para o brinde da chegada – um “aibol”. “Mr. Daddy” riu-se surpreendido. Ficou fortínho. Bem sei que não se deve beber álcool naquelas condições por arrefecer o corpo, mas foi pouquinho.
Depois veio o silêncio. Um adormeceu, depois o outro. A excitação não me deixa dormir. Quero saber a que horas “acorda” o Sol. Chiiiiiiuuu, já ressonam.

Contemplo o Céu. Que maravilha. E volto à escrita.

5h15m – “A 1ª música que ouvi aqui foi Oceano de Djavan. Escrevo à luz da Lua. A tinta da caneta está a falhar.
Agora Pétala de Djavan.
Ainda não acredito que cá estou.
Passaram as dores nas pernas e nem me importo de ter esfarrapado as mãos e as unhas.
A Lua está meia. E eu tão tranquila a olhar o piquinho.
Quase todos dormem.
Eu aguardo o nascimento do Rei Sol.
Vejo um avião. Mais outro. Parece que quase se cruzaram”.


5h22m – “Alguns roncos.
Unhas cheiram a Caeiro. Levei com borboletas na testa”.

A esta hora faço um desenho do que vejo no piquinho. Pessoas saíram de algumas tendas e campismo e vão subindo o piquinho. O espectáculo é lindo. E vão conversando enquanto sobem a última etapa.

(Desenho Céu*)


No meu grupo ninguém dá sinais de acordar.

5h33m – “Subir uma montanha é ir ao fundo de nós. Estou a ouvir a música Gravity de Embrace.
Logo no início pensei que ia desmaiar. Lembrei-me que por vezes as forças aparecem quando estamos prestes a desistir, energias sobrehumanas invadem o nosso corpo.
Os Homens são seres superiores.
Lembro-me agora do tema de Dulce Pontes e Fernando Pessoa.
Não mijei na subida.
Vejo flashes no piquinho”.

5h40m – “Vejo a 4ª ou 5ª estrela cadente”

Em 15 minutos subimos de pés e mãos (meu foco fraquejou e já tinha mudado de pilhas) o piquinho.
“Pouco depois das 6horas estou no topo do topo. Estou com o rabo arder das fumarolas.
Dia começou a nascer. Agora aguardo a luz, a claridade.
Estou cá em cima. Ainda não acredito.
Preciso de luz.
Está cá um outro grupo.
É lindooo”

Éramos muitos em pouco espaço. Vi estranhos, conhecidos e até amigos. Aninhamo-nos todos como se fossemos da mesma família e esperamos e esperamos, se olhos postos no horizonte.

Enquanto isso, continuo a ouvir música. Auriculares impedem que o frio entre nos ouvidos e aqui a 2 351 metros o frio é muito.
Telefono à Mãe.

6h30m – “Oceano de Djavan.
O horizonte sobre São Jorge e Terceira enfeita-se de laranja/vermelho fogo.
(Foto Céu*)


Começo a sair do estado de “dormência”.
Here I am!
(Foto Céu* - Sombra da Montanha no Oceano)
Quando a obra do Criador começa a surgir ouço Elvis, You’ll Never Walk Alone.
O tapete de nuvens reflete-se na água”.


(Foto Céu*)

Fotos, fotos, fotos, descida do piquinho, uma mija na cratera e 7h55 começa a descida. A esta hora o "Manuel Portuga" já me manda mensagens de telemóvel a pedir fotos.

É melhor escrever apenas que metade da descida foi feita numa hora e que a outra metade teve uma duração de 2horas e meia. 11h25 – fim da descida (muito violenta para mim, que nunca faço exercício físico. Pelo caminho encontrei nove grupos que estavam a subir).
Resta-me acrescentar que passados 3 dias ainda estou inchada dos tornozelos e custa-me andar. Mas cantei pelo caminho tal era o desespero e só caí duas vezes, fora os ameaços.
(Foto Céu*)


Foi LIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIDO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!




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